All Hallows’ Eve

Neste ano sombrio, em que o obscurantismo retorna e ameaça as mulheres com fogueiras, resolvi celebrar a data do Halloween. Em tempos de uma nova Inquisição, organizada por um clero que conseguiu se infiltrar dentro do Estado (façanha esta que os primeiros caçadores de hereges não conseguiram), é nosso dever lembrar do passado e celebrar o fato de que estamos vivas e fortes, e seguiremos lutando. Para as mulheres, o simples ato de ser feliz é político, pois nos querem objetos e não sujeitos. Nos querem passivas e castas; nos querem mulheres de Atenas.

Por isso, na véspera do Dia de Todos os Santos, me reconecto a mim mesma, às partes de mim que são marginalizadas e estigmatizadas; que venham os meus sonhos, a minha loucura, meus versos, meus prazeres. Convido cada mulher que me lê a fazer o mesmo, e continuar o exercício pelo resto das luas do ano. Em um mundo que nos quer outras, é fácil nos esquecer de nós mesmas. Eu me recuso. E deixo aqui dois poemas meus, que dialogam entre si, como um modo de lembrar a mim mesma que a felicidade está em ser quem sou.

Adoração

Meus pés, firmes, fortes, velozes,
me levam aos meus efêmeros destinos.
Couro os guarda e os castiga:
meus pés, em suas casas,
suam e se rasgam.

À noite, florescem em delicado langor.
A água redime a machucada brancura da pele,
mas o anseio dos meus pés são as tuas mãos.
Formigam, doem, latejam;
em cada pulsação, o teu nome.
Mais do que a liberdade da nudez,
buscam os teus dedos, as tuas palmas,
os teus lábios, os teus dentes, a tua língua
_ em intensa adoração.

Mergulham no Estige que corre pela tua boca,
a qual sorve, gota a gota, a crua lida cotidiana,
alternando uma lenta degustação
do sal do cansaço e das nódoas do dia
com a exploração febril
das infinitas linhas femininas
de sua anatomia.
O rio imemorial flui montanha acima,
com a calma potência do mar.
Teu olhar se detém no meu; entrevejo
por segundos o instinto puro,
em que logo voltas a submergir.
Cada curva te desvia sem desviar…

Quando chegas ao fim, me desencontro.

Anatomia

O vigor das tuas pernas me prendia.
Aquele vermelho tão tímido
espiava entre os teus lábios,
me desafiando a abri-los
para que tingisse
livremente a minha boca.

Meu rosto tocou delicado
a escuridão de teus pêlos
se espraiando em penumbra sobre a tua pele.
Em minha língua, a doçura
do cheiro ardente de teus segredos semiocultos
prenunciava o sal de teus gemidos
a se agitar em mim.

Eu revelava o teu desenho pouco a pouco
em uma aquarela de tremores de orvalho.
O teu volume tangia a abertura
daquilo que em mim é mais profundo.
A tua voz confundiu-se ao meu silêncio
no instante sem nome do sublime.

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